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Infodemia do Autismo: Estamos Combatendo a Desinformação da Maneira Errada?
Tempo de leitura: 12 min
Introdução #
A resposta não é apenas checar fatos, mas praticar um jornalismo que ouve, inclui e capacita.
O diagnóstico de autismo de um filho inaugura um universo de incertezas e uma busca urgente por informação. Um pai ou uma mãe digita as primeiras perguntas no Google. Em questão de horas, seus feeds de redes sociais se transformam. Anúncios e postagens patrocinadas, impulsionados por algoritmos preditivos, começam a oferecer “curas milagrosas”, “protocolos de desparasitação” e dietas restritivas que prometem “reverter” o autismo. Este bombardeio não é acidental; é o ponto de partida de uma infodemia predatória que explora a vulnerabilidade para gerar lucro e engajamento.
A escala deste problema no Brasil é alarmante. Um relatório recente do DesinfoPop/FGV mapeou mais de 150 falsas causas e 150 curas perigosas para o Transtorno do Espectro Autista (TEA) circulando em comunidades online, um ecossistema que viu seu volume de conteúdo enganoso crescer 15.000% nos últimos cinco anos (SILVA, et al., 2025). Esta avalanche de desinformação colide diretamente com uma realidade demográfica cada vez mais visível: os dados preliminares do Censo de 2022 do IBGE apontam para uma população significativa de pessoas diagnosticadas com TEA no país, tornando a necessidade de informação confiável uma questão de saúde pública (IBGE, 2025).
Este artigo defende que a desinformação sobre autismo prospera em um vácuo deixado por uma cobertura jornalística historicamente capacitista e pouco qualificada. A seguir, vamos dissecar a anatomia desta infodemia, apresentar o jornalismo inclusivo como seu antídoto estratégico e demonstrar como ele pode capacitar a audiência com o letramento midiático necessário para navegar em um ecossistema digital complexo.
A Anatomia da Infodemia do Autismo: Por Que a Desinformação é Tão Eficaz? #
Para combater a desinformação, é preciso primeiro compreender sua anatomia e os mecanismos que a tornam tão persuasiva. Ela opera em três níveis interconectados: um ecossistema digital bem estruturado, uma exploração de vulnerabilidades psicológicas e um vácuo deixado pela mídia tradicional.
Mapeando o Ecossistema
O relatório “Desinformação sobre Autismo na América Latina e no Caribe” revela um cenário desolador. Narrativas que atribuem o autismo a fatores como o consumo de salgadinhos, a tecnologia 5G ou parasitas intestinais são disseminadas em grupos fechados no Telegram e outras plataformas. Essas alegações são frequentemente acompanhadas da promoção de “curas” perigosas, como o uso de dióxido de cloro (MMS/CDS), ozonioterapia e protocolos de desparasitação com solventes industriais (SILVA, et al., 2025). Este ecossistema não é apenas um repositório de crenças falsas; é um mercado lucrativo que monetiza o desespero de famílias em busca de respostas.
A Psicologia da Negação
Mas por que essas narrativas, mesmo quando bizarras, encontram um público receptivo? A resposta está na psicologia. Como explicam a especialista em saúde pública S. E. Gorman e o psiquiatra J. M. Gorman em “Denying to the Grave”, seres humanos não são processadores de fatos puramente racionais. Diante de tópicos carregados de ansiedade e incerteza, como a saúde de um filho, vieses cognitivos são ativados. O viés de confirmação nos leva a buscar e aceitar informações que confirmam nossas crenças ou medos preexistentes. O raciocínio motivado nos faz defender agressivamente uma crença, mesmo diante de evidências contrárias, para evitar a dissonância cognitiva (GORMAN & GORMAN, 2016). A desinformação sobre autismo é projetada para explorar exatamente essas vulnerabilidades: ela oferece explicações simples para uma condição complexa e promete controle (a “cura”) onde a ciência oferece manejo e aceitação.
O Papel do “Capacitismo Algorítmico”
Este ecossistema de desinformação não surgiu do nada. Ele floresceu no vácuo deixado pela mídia tradicional. Como aponta a pesquisadora S. E. Orrú, a cobertura jornalística sobre autismo tem sido historicamente marcada por uma “espetacularização da diferença”, oscilando entre os estereótipos do “gênio excêntrico” e da “criança-problema” (ORRÚ, 2016). Essa representação, além de capacitista, raramente incluiu as vozes e perspectivas das próprias pessoas autistas. O resultado foi um público mal informado e uma comunidade sub-representada.
Hoje, esse problema histórico é amplificado pelo que podemos chamar de capacitismo algorítmico. Podemos definir o capacitismo algorítmico como a perpetuação e amplificação de vieses e estereótipos capacitistas por sistemas automatizados que otimizam para o engajamento em detrimento da segurança e da acurácia da informação. As plataformas de redes sociais, cujo modelo de negócio se baseia em maximizar o engajamento, não distinguem conteúdo de qualidade de desinformação perigosa. Seus algoritmos identificam um usuário vulnerável (um pai pesquisando sobre autismo) e, em vez de priorizar fontes de saúde pública, entregam o conteúdo que gera mais reações emocionais, cliques e compartilhamentos — que, invariavelmente, são as narrativas sensacionalistas e as promessas de curas milagrosas. A mídia tradicional criou o vácuo; os algoritmos o preencheram com veneno.
O Paradigma do Jornalismo Inclusivo: Uma Resposta Estratégica e Ética #
Se a desinformação prospera em um vácuo de confiança e representação, o antídoto não pode ser apenas a checagem de fatos. É preciso preencher esse vácuo com um jornalismo que seja inerentemente mais confiável, representativo e útil. O jornalismo inclusivo é essa resposta estratégica. Ele se sustenta sobre pilares práticos que, juntos, transformam a cobertura sobre autismo de um relato sobre “eles” para uma conversa “conosco”.
Pilar 1: “Nada sobre nós, sem nós”: Autistas como Fontes e Especialistas
O princípio fundamental do jornalismo inclusivo é a mudança de perspectiva: pessoas autistas deixam de ser meros objetos de reportagem para se tornarem fontes ativas, especialistas e protagonistas de suas próprias narrativas. A cobertura tradicional, muitas vezes, limita-se a entrevistar pais e médicos não-autistas, reforçando uma visão externa e frequentemente patologizante. O jornalismo inclusivo, ao contrário, busca ativamente a “expertise da vivência”. Coletivos como o Introvertendo, um podcast produzido inteiramente por autistas, demonstram que a própria comunidade é uma fonte rica de conhecimento, análise e pautas relevantes, oferecendo uma perspectiva interna que o jornalismo externo raramente consegue capturar (MELLO, 2021). Incluir uma pessoa autista para comentar uma nova pesquisa, uma política pública ou uma tendência cultural não é apenas um ato de representatividade; é um ato de rigor jornalístico. Isso se traduz, na prática, em comissionar artigos de autores autistas, criar conselhos consultivos de comunidade para guiar a cobertura e, fundamentalmente, contratar jornalistas e editores neurodivergentes.
Pilar 2: A Precisão da Linguagem e o Combate ao Estigma
As palavras importam. A linguagem usada pela mídia molda a percepção pública sobre o autismo. Termos desatualizados ou carregados de estigma, como “sofre de autismo” ou “doença”, perpetuam a ideia de uma tragédia a ser curada, o exato terreno emocional onde a desinformação floresce. O jornalismo inclusivo adota uma linguagem precisa e respeitosa, informada pela própria comunidade. Isso inclui entender o debate sobre “pessoa com autismo” (linguagem da pessoa em primeiro lugar) versus “autista” (linguagem da identidade em primeiro lugar). Enquanto o primeiro foi um avanço para separar a pessoa da condição, muitos autistas hoje preferem o segundo termo, argumentando que o autismo é uma parte inseparável de sua identidade, não um acessório. Um jornalista inclusivo não precisa tomar um lado, mas deve entender a nuance e, sempre que possível, perguntar ao entrevistado qual termo prefere, demonstrando respeito e precisão (MELLO, 2021).
Pilar 3: Jornalismo de Soluções na Prática
Para combater eficazmente as narrativas de “curas milagrosas”, não basta dizer que elas são falsas. É preciso mostrar o que é verdadeiro. O jornalismo de soluções, como definido por Christofoletti e Esdras, oferece o framework para isso (CHRISTOFOLETTI & ESDRAS, 2020). A mudança é sutil, mas profunda: enquanto o jornalismo tradicional pergunta “Qual é o problema?”, o jornalismo de soluções pergunta “Quem está tentando resolver este problema e o que podemos aprender com suas tentativas, sejam elas bem-sucedidas ou não?”. Em vez de focar apenas nos problemas e nas fraudes, a pauta se desloca para as respostas: “Como funcionam as terapias com evidência científica?”, “Quais escolas estão implementando modelos de inclusão bem-sucedidos?”, “Que políticas públicas estão garantindo direitos e autonomia para adultos autistas?”. Ao investigar e apresentar soluções de forma crítica e detalhada, o jornalista oferece um serviço inestimável: ele substitui o vácuo da incerteza por informação acionável e esperança realista, construindo uma barreira natural contra o apelo emocional da pseudociência.
Pilar 4: Acessibilidade como Fronteira Final da Inclusão
A inclusão não termina no conteúdo; ela se estende à forma. De nada adianta uma reportagem brilhante se a plataforma onde ela é publicada cria barreiras para o público que pretende servir. Como demonstra a pesquisa de J. B. da Silva sobre jornalismo online, muitos portais de notícias falham em seguir as diretrizes básicas de acessibilidade digital (WCAG) (SILVA, 2022). O jornalismo inclusivo se preocupa com isso. Na prática, significa garantir que todas as imagens tenham texto alternativo descritivo, que os vídeos possuam legendas de alta qualidade e, idealmente, tradução em Libras. Indo além, significa adotar um design limpo, com texto bem estruturado e linguagem clara e direta, evitando sobrecarga sensorial e ambiguidades. Este é o “efeito rampa” da acessibilidade digital: adaptações projetadas para um grupo específico que, no fim, geram benefícios universais, melhorando a experiência de todos os leitores.
Pilar 5: Do Princípio à Prática: Um Checklist para a Redação Inclusiva
Transformar estes pilares em prática diária requer um roteiro. Para o jornalista ou editor que deseja cobrir o autismo de forma ética e eficaz, o seguinte checklist pode servir como um guia prático:
- Check de Fontes: Minha matéria inclui a voz ou a perspectiva de pelo menos uma pessoa autista?
- Check de Linguagem: Revisei meu texto para eliminar termos capacitistas? Estou usando a terminologia preferida pela comunidade ou pelo meu entrevistado?
- Check de Enquadramento: Minha pauta foca apenas no desafio ou também explora uma resposta, uma solução ou uma perspectiva de “asset-framing”?
- Check de Acessibilidade: A versão final do meu conteúdo (texto, imagens, vídeo) é acessível para pessoas com diferentes deficiências, incluindo as sensoriais e cognitivas?
- Check de Título e Chamada: Minha manchete é precisa e informativa, ou recorre a sensacionalismo e clickbait que, embora gerem cliques, podem alimentar o ecossistema de desinformação?
Adotar este paradigma não é apenas uma questão de responsabilidade social; é uma estratégia neurocientificamente informada para construir confiança. Ao centralizar vozes autênticas e fornecer soluções práticas, o jornalismo inclusivo substitui a incerteza que alimenta o “raciocínio motivado” e cria uma nova âncora de credibilidade que é mais forte que o “viés de confirmação”. Ele não apenas combate a desinformação: ele a torna psicologicamente menos necessária, construindo o ativo mais valioso na era da infodemia: a confiança resiliente do público.
Capacitando a Audiência: O Jornalismo como Ferramenta de Letramento Midiático #
O jornalismo inclusivo não se contenta em apenas publicar a verdade; ele se preocupa em garantir que a verdade seja compreendida e se torne útil. Essa abordagem transforma o ato de informar em um ato de capacitação, equipando o público com as ferramentas necessárias para navegar em um ecossistema de informação cada vez mais poluído.
Desbancar sem Amplificar: Ensinando a Reconhecer Táticas
A resposta instintiva à desinformação é desmenti-la. No entanto, a simples repetição de uma alegação falsa, mesmo para refutá-la, pode paradoxalmente reforçá-la na memória do público. O jornalismo inclusivo adota uma estratégia mais sofisticada: “desbancar sem amplificar”. Conforme os manuais de combate à desinformação da UNESCO, o foco da reportagem muda da alegação para a tática (IRETON & POSETTI, 2019). Em vez de titular “Não, MMS não cura autismo”, o jornalista produz uma matéria com o título “Como identificar falsas curas para o autismo: um guia sobre as táticas de desinformadores”. A reportagem, então, não detalha a pseudociência, mas explica os padrões: o uso de “jargão científico” fora de contexto, o apelo a testemunhos emocionais em vez de estudos clínicos, e a promoção de uma conspiração da “indústria farmacêutica”. Ao fazer isso, o jornalista não apenas refuta uma mentira específica, mas educa o leitor a reconhecer o padrão de todas as mentiras futuras, promovendo o que pesquisadores como Santos e Farias chamam de letramento midiático e informacional (SANTOS & FARIAS, 2021).
Um Jornalismo de Serviço e Utilidade
Ao adotar os pilares da inclusão e das soluções, o jornalismo transcende a reportagem diária e se torna um recurso de serviço público. Uma matéria que explica as terapias baseadas em evidências, que entrevista adultos autistas sobre suas experiências escolares ou que oferece um guia sobre direitos e políticas públicas se torna uma fonte de consulta permanente. Para a família que acabou de receber um diagnóstico, um veículo de comunicação que oferece consistentemente esse tipo de conteúdo se transforma na primeira e mais confiável fonte de informação. Ele se torna a âncora em um mar de incertezas, o lugar seguro que a família aprende a procurar antes de se aventurar nas águas turvas dos algoritmos das redes sociais.
Construindo Resiliência Comunitária
O efeito combinado de um jornalismo que educa sobre táticas de desinformação e que serve como um recurso confiável é a construção de resiliência. A audiência não é mais vista como um receptáculo passivo de fatos, mas como um parceiro ativo no ecossistema de informação. Um público capacitado é menos propenso a compartilhar conteúdo enganoso, mais apto a questionar fontes e mais inclinado a apoiar e a se engajar com o jornalismo de qualidade. A longo prazo, essa estratégia não apenas protege a comunidade autista e suas famílias; ela fortalece o tecido social como um todo, inoculando a sociedade contra a infodemia.
Conclusão #
Voltamos àquela família, recém-saída de um consultório médico, digitando suas primeiras perguntas em um buscador. A jornada dela no ecossistema de informação será definida por aquilo que os algoritmos escolherem mostrar primeiro. Vimos como a desinformação sobre autismo é um problema complexo, enraizado não apenas em fatos falsos, mas em uma psicologia da negação, em um vácuo de representação midiática e na lógica predatória do “capacitismo algorítmico”.
A simples checagem de fatos, embora necessária, é insuficiente. O antídoto mais robusto é uma transformação fundamental na forma como o jornalismo aborda a neurodiversidade. O jornalismo inclusivo, com seus pilares práticos — centrar vozes autistas, usar linguagem precisa, focar em soluções, garantir acessibilidade e fornecer um guia prático para a redação — é essa transformação. Adotar este paradigma não é apenas uma questão de responsabilidade social; é uma estratégia neurocientificamente informada para construir confiança. Ao centralizar vozes autênticas e fornecer soluções práticas, o jornalismo inclusivo substitui a incerteza que alimenta o “raciocínio motivado” e cria uma nova âncora de credibilidade que é mais forte que o “viés de confirmação”. Ele não apenas combate a desinformação: ele a torna psicologicamente menos necessária, construindo o ativo mais valioso na era da infodemia: a confiança resiliente do público.
O chamado à ação é, portanto, duplo. Para as redações e jornalistas, o desafio é adotar este checklist, investir em treinamento e enxergar a cobertura sobre deficiência não como um nicho, mas como uma fronteira da inovação e do serviço público. Para o público, o chamado é se tornar um consumidor mais exigente: demandar representatividade, apoiar financeiramente os veículos que praticam o jornalismo inclusivo e, acima de tudo, compartilhar informação com o mesmo cuidado e responsabilidade que se espera de quem a produz. Apenas juntos, em um ciclo virtuoso de produção e consumo consciente, podemos transformar o ecossistema de informação de um campo minado de desinformação em uma ferramenta de genuíno empoderamento.
Referências #
1. CHRISTOFOLETTI, Rogério; ESDRAS, Silvana. Jornalismo de soluções: um modelo para qualificar a profissão. Estudos em Jornalismo e Mídia, v. 17, n. 1, p. 50-61, 2020.
2. GORMAN, Sarah E.; GORMAN, Jack M. Denying to the Grave: Why We Ignore the Facts That Will Save Us. Oxford: Oxford University Press, 2016.
3. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pessoas com deficiência e pessoas diagnosticadas com transtorno do espectro autista: Resultados preliminares da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2025.
4. IRETON, Cherilyn; POSETTI, Julie (Eds.). Jornalismo, Fake News & Desinformação: Manual para Educação e Treinamento em Jornalismo. Brasília: UNESCO, 2019.
5. MELLO, A. C. (Org.). O Guia Anticast de Antirracismo – Módulo Autismo. Introvertendo, 2021.
6. ORRÚ, Sílvia Ester. A mídia e o autismo: a espetacularização da diferença. Revista Educação Especial, Santa Maria, v. 29, n. 55, p. 349-360, 2016.
7. SANTOS, M. P. D.; FARIAS, M. D. S. Letramento midiático e informacional no combate à desinformação: uma análise das ações no Brasil. Revista Mídia e Cotidiano, v. 15, n. 2, p. 166-187, 2021.
8. SILVA, E. C. M.; GARCIA, A. A. F.; ALMEIDA, G. de; RICARD, J. Desinformação sobre Autismo na América Latina e no Caribe. São Paulo – SP, Brasil, 2025.
9. SILVA, J. B. da. Acessibilidade digital no jornalismo online: desafios e possibilidades para a inclusão de pessoas com deficiência. Brazilian Journalism Research, v. 18, n. 1, p. 158-183, 2022.